Já faz um certo tempo que fui assistir ao espetáculo de Butô IKIRU, do Tadashi Endo, e desde então ficou uma vontade enorme de traduzir um pouco do quanto aquela experiência se comunicou com um monte de coisas que eu vinha trazendo comigo. Eu conhecia o Butô através do filme alemão Hanami, Cerejeiras em Flor, mas nada que fosse tão revelador quanto o dilacerante espetáculo do Tadashi. Como não sou bobo nem nada, não me atreverei a falar do Butô aqui. Prefiro deixar que os vídeos revelem por eles mesmos como o Butô pode chegar até vocês, até porque eu quero seguir por um outro caminho que tem muito mais a ver com a minha relação com a arquitetura do que com o Butô em si.
Sendo assim, queria dividir com vocês esta sensação de não estar só na arquitetura, mas repleto de sombras. Sei que não sou o único, mas quando estudo, desenho e sonho com uma arquitetura é como se junto comigo viessem todos aqueles que de alguma maneira me inspiraram a querer ter a arquitetura perto de mim. É como se a minha mão que desenha tivesse um pouco de várias outras mãos ocultas daqueles outros que passaram pelo mesmo caminho que eu. É como se fazer arquitetura fosse evocar constantemente a memória daqueles arquitetos que eu aprendi a admirar observando e conhecendo suas trajetória e projetos. Algo como se dar conta das boas sombras escondidas no fazer da arquitetura.
E é com o peso do compromisso com essas pessoas que tanto fizeram para a arquitetura que parece habitar o meu desejo de também fazer arquitetura. Parece estranho, mas como fiz uma escolha bem cedo, antes mesmo de entender bem o que pudesse ser realmente fazer um projeto, sabia que não era o conhecimento nem a idade que me aproximavam da arquitetura. O que realmente me fazia querer seguir aquele caminho era a vontade de perpetuar a paixão que eu via no trabalho daqueles arquitetos famosos que eu aprendi a admirar ainda bem criança.
E foi o Butô, de alguma forma, que me ajudou a entender só por agora como passamos a vida nos apaixonando por mortos e sombras. IKIRU, nome que dá título ao espetáculo do Tadashi, significa VIDA em português, e não à toa se trata de um trabalho em homenagem a recentemente falecida e brilhante bailarina Pina Bausch. No final do espetáculo, Tadashi lê uma carta que reproduz com clareza esta estreita relação que há entre vivermos e produzirmos com a boa sombra dos mortos:
"Vida e morte estão muito próximos. Se não há vida, não há morte. Nascimento é o primeiro passo para morte. Pina Bausch morreu, Michael Jackson morreu, Kazuo Ohno morreu. Isso é amedrontador -- a morte está se aproximando. É triste perceber que os artistas que influenciaram meu trabalho, de repente, se foram -- para sempre. Porém, isso também me faz forte. Quando assisti Pina Bausch em 'Café Müller' -- cega e incerta, fraca mas forte, para ultrapassar todas as barreiras (cadeiras) com o desejo imperturbável de alcançar sua meta, eu fiquei tão impressionado! Eu nunca me esqueço dessa cena. Neste momento, tenho que me tornar muito mais forte do que antes. Eu tenho a sensação que devo trabalhar muito mais. Ir muito mais fundo".
Assim também me sinto ao ousar querer sonhar com edifícios, parques e arquiteturas. É tão triste pensar que já não temos mais por perto uma Lina Bo Bardi, um Burle Marx ou uma Mayumi Lima. Mas é nessa tristeza profunda e tão pessoal que parece nascer a potência para uma coisa boa e nova. Eu jamais poderia pensar em querer fazer arquiteturas sem antes ter conhecido essas pessoas e seus trabalhos maravilhosos. Não tenho dúvidas de que eles seguem aqui comigo! Nada mais pode ser a arquitetura do que um eterno evocar dessas pessoas, numa vontade de fazer seus trabalhos e lutas permanecerem no tempo. Não porque a arquitetura pode ser feita de pedra e concreto e durar por centenas de séculos, mas porque ela é feita com um revirar sem fim e uma eterna homenagem às nossas boas sombras.
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